Levantamento inédito revela os impactos da extração ilegal de areia
Os faróis cortam a escuridão da estrada de pedras, num zigue-zague pela Caatinga que só sabe fazer quem conhece, está acostumado. Visto de fora, é um caminhão-caçamba; de dentro, é uma caixa de ferro ambulante sacolejando com a sinuosidade e relevo da estrada, pronta para se desmontar ou cuspir alguém pela janela. Ou pela carroceria, onde estão três homens com pás; dentro, o motorista em mais uma madrugada de trabalho até a beira do rio. No retrovisor, um rosário; na cintura, um revólver, porque “o mal vem de qualquer lugar”. Nem sabe se ainda atira, mas na fé “acerta”. Chegamos ao destino. Gira a chave e, finalmente, o barulho infernal do motor respeita o silêncio da madrugada. Os faróis iluminam o alvo:
– Bora, negada, trabalhar!
Os três homens pulam da caçamba com a mesma naturalidade de um robô que atende a comandos e, sem falar nada, enfiam os pés e as pás no solo e arremessam a areia para dentro do veículo. Em 50 minutos fazem, em média, 350 arremessos cada um até encherem o vazio com três toneladas de grãos. Antes que amanheça, já estão todos de volta à estrada no rumo da cidade.
Pela encomenda, o caçambeiro recebe R$ 120. Tira R$ 10 para cada um dos pazeiros e fica com o restante. A loja de material de construção, que solicitou a carga, vende por R$ 400 ao cliente que encomendou “uma carrada de areia de lavada”. Ótima para fazer o piso da casa em construção. Assim, o minério no leito seco do rio Acaraú enche o alicerce da obra particular, afinal, dentre tantas coisas, é para isso que serve a areia.
Água, ar, areia
Terceiro recurso natural mais consumido pelo homem no Planeta, depois da água e do ar, a areia é a base do desenvolvimento das civilizações, mas sua exploração desordenada tem deixado um rastro de destruição, mortes e uma incrível escassez, em meio à abundância. Isto porque nem toda areia serve para as construções. Nenhum construtor inveja o deserto do Saara – vistos num microscópio, seus grãos são esféricos. Somente uma assimetria pode permitir um encaixe, portanto, uso para formação de concreto. Em outras palavras, grãos de formatos irregulares que servem para obras. Eles estão no rio, no mar e no entorno.
Com faturamento estimado entre U$ 200 bilhões e U$ 350 bilhões, a extração ilegal de areia ocupa a terceira posição no ranking de crimes globais, atrás de piratarias e falsificações e do tráfico de drogas. Os dados são do relatório “Crime Transnacional e o Mundo em Desenvolvimento”, a partir de dados da Global Financial Integrity (GFI) com ONU, Interpol, e o pesquisador brasileiro Luís Ramadon.
Como o ilegal é mais barato, esse mercado se aproveita da falta de fiscalização e da corrupção de alguns fiscais para manter a engrenagem nesse material que, paradoxalmente, é “mais raro do que se pensa”, como diz maior estudo já feito pela Organização das Nações Unidas (ONU) sobre esse mineral.
Investigação
Esta reportagem é fruto de 14 meses de apuração, 5.400 quilômetros percorridos por seis estados brasileiros (antes da pandemia), leitura de mais de seis mil páginas de inquéritos, além de relatórios internacionais, estudos de dissertação e teses de doutoramento de assuntos relacionados ao tema.
Esta série ainda trará dados inéditos no País sobre a exploração de areia. Foram 32 pedidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI) para todas as unidades da Federação. As idas e vindas das solicitações, desafio à parte, serão conferidas nos próximos dias.
Durante os meses de apuração, também fizemos levantamento nunca feito por nenhum órgão público fiscalizador federal: um compilado de quem são os CPFs e CNPJs campeões de multas por extração ilegal de areia no País – quando os estados fazem esse registro, embora misturado a outras infrações ambientais.
No Ceará, na Bahia e no Rio de Janeiro, apontamos a atuação de milícias entre os traficantes de areia, incluindo a acesso a interceptações telefônicas com autorização judicial, evidenciando extorsões para o velho “fazer vista grossa”. Esse mercado é bilionário, por isso quem dele se beneficia não quer ninguém no caminho. Encontramos moradores e até um promotor de Justiça perseguidos e ameaçados pelos traficantes de areia, além de conflitos entre grupos que rivalizam por esse minério do leito dos rios.
Trazemos o relato de uma ambientalista, moradora de região litorânea, que sofreu atentado por denunciar o tráfico de areia. A nossa equipe também chegou a ser observada. Durante a produção da reportagem, em Camaçari (BA), olheiros do tráfico criaram barricadas para impedir a passagem de curiosos como nós, evidenciando a rede de informações do GDA, o Grupo da Areia. Se uma equipe de fiscalização municipal chega, desarmada, é posta para fora sob a mira de pistolas.
Enquanto o Meio Ambiente é degradado e o assoreamento causa desastres e mortes nos períodos de cheias dos rios rasos e largos, o tráfico de areia enriquece alguns e mantém uma grande massa de miseráveis, que têm na retirada dos grãos o sustento da família inteira. Excluídos de diversas formas, tornam-se partícipes do “maior crime ambiental no Brasil”, segundo apontam especialistas. São esses miseráveis também os mais punidos nas fiscalizações e apreensões, enquanto quem lucra exclusivamente segue invisível e não é procurado.
Foram mais de 50 pessoas entrevistadas na apuração, dos mais diferentes lugares do País. Em nem todos os lugares conseguimos chegar fisicamente, mas tivemos o apoio das próprias comunidades, sobretudo quando começou a pandemia da Covid-19. Por WhatsApp, encaminhavam os flagrantes registrados. A quarentena não atingiu quem trabalha na ilegalidade. Os moradores, então, nos auxiliaram nesta reportagem por “não aguentar mais tanto roubo”.
Para qualquer lugar que olhemos, algo tem areia em sua composição. E a qualidade desta irá afetar diretamente a qualidade daquela.
Fonte: Diário do Nordeste/Melquíades Júnior